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O (in)deferimento tácito: Como entender um estado sem o dever legal de responder ao cidadão?

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Artigo escrito por: Salva Mabasso

O estado parece não ter obrigação legal de responder ao cidadão. Muitos casos de conflito entre cidadãos e instituições de administração pública acontecem sem que as últimas se dignem a prestar contas das reclamações dos cidadãos. Por exemplo, o Jornal O País escreve que em Chimoio, um braço-de-ferro opõe o Fundo de Investimento e Património para Abastecimento de Água (FIPAG) e moradores do bairro Nhamajessa[1]. Em causa está o facto de os moradores terem contribuído com tubagem e dinheiro de escavação para terem acesso à água e a mesma foi desviada para um outro bairro. E não só, mesmo com este acto que já se afigura problemático, a FIPAG continua a cobrar a água aos cidadãos na zona quando ela mesmo desviou a condutora adutora e interrompeu o fornecimento de água.

Por que é que o FIPAG e muitas outras instituições não precisam de responder ao cidadão, se na Constituição da República se dão fundamentos para existirem garantias políticas? As garantias constitucionais foram previstas como forma de coibir o abuso do Estado ou ilegalidade cometida culminando com a violação dos direitos fundamentais do cidadão, para que através delas possam responsabilizar o Estado. A Constituição da República prevê as garantias no capítulo III sobre Direitos, Liberdades e Garantias Individuais que vai dos artigos 56 a 72. No caso acima estamos perante a uma ilegalidade e violação gritante a constituição, visto que no artigo n.1 do artigo 58 referente ao direito a indemnização e responsabilidade do Estado, prevê que a todos é reconhecido o direito de exigir nos termos da lei indemnização pelos prejuízos que forem causados pela violação dos seus direitos fundamentais, algo que os cidadãos no caso descrito já haviam feito muitas vezes. Os agentes do FIPAG presentes no local, ignoraram o facto descrito no n.2 do artigo 58 da CRM que prevê que o Estado é responsável pelos danos causados por actos ilegais dos seus agentes.

Este tipo de comportamento viola a ideia de justiça social preconizada na constituição. A CRM no seu artigo no seu artigo 1 preconiza que “A República de Moçambique é um estado independente, soberano, democrático e de Justiça social.”, e adianta na alínea c) do artigo 11 (objectivos fundamentais) que o Estado tem como um dos objetivos “a edificação de uma sociedade de justiça social e a criação do bem-estar material, espiritual e de qualidade de vida dos cidadãos”. Neste contexto, uma entidade do Estado a expropriar o cidadão dos seus recursos materiais contraria de forma flagrante os ditames da constituição da república.

Segundo Esteves de Oliveira et al, pag 103,  “O acto tácito é consequência da violação do dever de decisão que incumbe à Administração Publica. Neste contexto, a sua preterição traduz-se no vicio da violação da lei com consequências ao nível do contencioso administrativo”.

De onde vem tanta impunidade? O problema no país é que na especificação dos contornos da lei específica para a implementação dos princípios constitucionais, o executivo e o legislador se concentraram somente nos direitos da administração pública e ignorou as concomitantes garantias dos cidadãos contra os excessos da administração. É com base neste vácuo de direitos fundamentais que o representante do FIPAG em Chimoio não precisa de “…entrar, no entanto, em detalhes em relação ao dinheiro que o FIPAG cobra sem fornecer a água”[2], podendo continuar com esta prática sem nenhum tipo de sanção administrativa ou judicial. A constituição de momento é mais uma lista de intenções abstratas sobre o direito do cidadão, mas cujo gozo depende da vontade política do governo em legislar.

Verificamos na constituição que temos normas de princípio programáticas, que segundo o artigo sobre a classificação das normas jurídicas, define que são as que estabelecem programas a serem desenvolvidos mediante legislação integrativa da vontade constituinte. A constituição seguiu classificando as diversas áreas, contudo continuou omissa quanto a operacionalização de todos os direitos plasmados.  Temos a noção de que as normas que constam na constituição são meramente programáticas e que a ideia era de que posteriormente surgiram e surgirão sempre leis ordinárias a reger melhor cada um dos direitos, bem, esse é o dever ser.

Nas leis que vem a reger a operacionalização da forma como os direitos devem ser protegidos, temos verificado a ausência da responsabilização dos agentes/colaboradores das instituições estatais ou privadas que tenham que prestar serviços ao cidadão com vista a garantir o cumprimento do direito ou que o cidadão usufrua do seu direito na sua plenitude. Com essa ausência de responsabilização, sanção no caso de violação, essa norma vem a ser ineficaz, as mesmas leis, trazem uma ideia de que, apenas existem para beneficiar e proteger o Estado e não o cidadão.

A resolução n.1/2003 de 28 de Maio, do Conselho Nacional da Função Pública define os assuntos específicos sujeitos ao deferimento tácito, mas somente em situações que vinculam os recursos humanos do Estado, não sendo aplicável a particulares. No caso do deferimento tácito para o administrado, o Estado fez uma lei que que remete a outras leis específicas, nulificando de forma automática o processo, pois isso exige a ginástica administrativa de existência de uma lei especifica sobre cada problema de relacionamento entre o administrado e administração publica. O número 1 do artigo 107 da Lei 14/2011 diz sobre o deferimento tácito: “Se a decisão não for proferida no prazo estabelecido por lei, as autorizações ou aprovações solicitadas apenas se consideram concedidas nos casos em que leis especiais prevejam o deferimento tácito”. O número 2 do mesmo artigo estabelece o prazo de 25 dias, se não houver outras disposições que indiquem algo diferente para o caso específico. No número 4 do mesmo artigo, prevê-se que haverá deferimento tácito do pedido do particular sempre que a administração pública não proferir a decisão no prazo estipulado por lei. Mas na mesma na alínea, o legislador volta a colocar outro impedimento ao conteúdo tácito do deferimento, ao legislar que: “Findo o prazo do deferimento tácito o órgão competente deve confirmar o pedido, à pedido do requerente, e uma vez confirmado o deferimento tácito será nula toda decisão que vier a posterior”.

Por conseguinte, da análise feita verificamos que somente regulam assuntos sujeitos ao diferimento tácito apenas na relação Estado e seus agentes (dentro da função pública), e não nos diversos assuntos em que um cidadão lida com o estado. Um cidadão injustiçado por uma instituição do Estado não tem nenhum mecanismo para obrigar este a uma resposta formal.

Podemos perceber que essa ideia de normas de princípio programático foi mal-entendida, visto que só não se pratica nas garantias do cidadão, mas está totalmente legislada quando se trata dos direitos de execução prévia da administração pública e na responsabilização do cidadão.

De que forma a legislação que protege o cidadão em Moçambique foi estruturada até lhe colocar em situação de total e completa impotência política contra excessos visíveis e claramente legais da administração pública? Como explicar termos uma constituição progressista e ao mesmo tempo termos cidadãos sem poderem exercer as garantias políticas de travar ações da administração pública?

É crucial lançar-se com urgência um debate nacional sobre o imperativo do deferimento tácito como um mecanismo de obrigar o estado a responder ao cidadão. Caso contrário, os mecanismos de responsabilização continuarão a ser somente políticos e não administrativos. Isso esvazia a ambição de construção de um estado de direito, e encoraja como alternativa ações políticas para forçar o estado a escutar as reivindicações dos cidadãos. A ideia de um estado que tacitamente indefere os pedidos dos seus cidadãos é uma aberração constitucional que não dignifica nem aos legisladores e nem aos órgãos judiciais de tutela como o Tribunal Supremo.

Poderíamos encontrar no deferimento tácito uma forma positiva de ver o direito do cidadão salvaguardado, visto que primeiro ele surge devido ao silêncio do Estado na solicitação do cidadão, mas também tem o lado de que confirmado o deferimento nenhuma outra decisão que vier a posterior poderá ser válida. O deferimento tácito é um mecanismo do Direito Constitucional criado pela jurisprudência para garantir ao cidadão a proteção em relação a estes excessos da administração pública. No caso específico de Moçambique, isso não existe legislado para o cidadão comum, deixando este à mercê da vontade da administração pública.

FIM

[1] https://www.opais.co.mz/fipag-acusado-de-burlar-clientes-em-chimoio/

[2] https://www.opais.co.mz/fipag-acusado-de-burlar-clientes-em-chimoio/

Salva Madalena Numaio Mabasso, activista social e Advogada inscrita na Ordem dos Advogados de Moçambique. É licenciada em Direito pelo Instituto Superior de Tecnologia e Gestão (ISTEG), tem diploma em quadro legal, resolução de conflitos eleitorais e segurança eleitoral pela Bridge, conflitualidade e desenvolvimento institucional pela Justa Paz, e mediação em processos civis pelo Tribunal Supremo. É colaboradora no projecto “Constituição e Justiça Social” do CEPCB, um projecto que advoga por uma ligação mais forte entre direitos plasmados na constituição e a responsabilização de governos no poder. No projecto, o princípio básico é o de que a velocidade de satisfação jurídica da garantia de execução prévia da administração pública deve ser igual à velocidade de garantia do exercício do direito de petição de qualquer cidadão afectado, sem nenhum constrangimento burocrático determinado pela mesma administração pública.

Sobre o Autor

1 Comentário

  • Gostava de felicitar a autora, é uma reflexão pertinente nos tempos que correm . Há de facto muita impunidade no garante da observância da lei no país, tem se notado que a lei favorece e encoberta um grupo e aos cidadãos de nada serve, se não “ só para o inglês ver”. São questões desgastantes que pela impunidade tem cidadãos que perdem a vida sem nenhuma resposta às suas preocupações, e quando a lei é chamada fica cega, surda e muda.

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