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O problema da primazia do interesse do provedor público

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Artigo escrito por: Salva Mabasso

A primazia do interesse do provedor público é hoje um problema para as garantias constitucionais dos indivíduos. Pequenas revisões no ordenamento jurídico nacional criaram uma situação em que o interesse da Administração Pública, manifestado de forma discricionária pelo provedor público, se sobrepõe ao direito constitucional do cidadão de se proteger de actos da Administração Pública. Este direito do cidadão é um elemento fundamental numa democracia liberal, e as providências cautelares, tal como usadas pelo CDD no caso das novas portagens na Circular de Maputo, são um exemplo do uso desse direito por cidadãos ou organizações que os representem.

O problema é que não está plasmado na Constituição da República (CRM) que o governo, por via de actos políticos e da administração, não deve esvaziar o sentido das garantias constitucionais. O governo falha no seu papel de órgão do Estado ao permitir que a Administração Pública tenha mais acesso a recursos judiciais do que o cidadão quando se trata de contenciosos na implementação de princípios constitucionais. Deve-se plasmar na CRM que o gozo das garantias particulares pelo cidadão deve beneficiar-se da mesma celeridade ou morosidade processual que as garantias de execução prévia dos actos da administração pública. Somente nesse contexto será possível obrigar o governo a desenvolver as instituições de justiça aos vários níveis da administração estatal.

Sem isso, a administração da justiça, da qual a providência cautelar é um instrumento constitucional fundamental, será um instrumento de decoração da retórica dos actos públicos, e nunca um instrumento de orientação de políticas, de punição de instituições públicas, ou de protecção atempada dos direitos do cidadão tal como era intenção do legislador.

Segundo um artigo da Sal e Caldeira (2014) que citamos aqui extensamente, “Num Estado democrático, o reconhecimento de que a Administração Pública (“AP”), no âmbito do seu poder de actuação discricionário e poder de execução prévia das suas decisões, pode cometer excessos (ou mesmo “abusos”) e violar direitos e interesses legítimos dos cidadãos, leva a consagração de garantias aos particulares. Estas garantias podem ser distinguidas em garantias políticas, garantias graciosas e garantias contenciosas (a destrinça entre elas está nos órgãos a quem se confia a efectivação das garantias, sendo que, para as primeiras são efectivadas pelos órgãos políticos, as segundas pela AP e as terceiras pelos tribunais).”

No caso das providências cautelares, podemos dizer que se trata de garantias contenciosas por espelharem uma situação em que o cidadão recorre aos órgãos judiciais de uma decisão burocrática que pode lesar os seus interesses actuais ou futuros.

As garantias dos cidadãos, apesar de plasmadas na lei, são difíceis de ser gozadas, e o caso da REVIMO não é isolado. A experiência moçambicana mostra casos recorrentes de violação de direitos pela Administração Pública sem que cidadãos consigam ver seus direitos ressarcidos. O FIPAG e a EDM são exemplos de provedores públicos aparentemente imunes às reclamações dos cidadãos, ligadas à má prestação de serviços, cobranças discricionárias e recusa de ressarcir o cliente em casos de falha gravosa da Administração Pública. Por exemplo, a destruição constante de eletrodomésticos por oscilações frequentes da corrente eléctrica, ou quando exigem ao cidadão a liquidação prévia de facturas emitidas a consumidores que não recebem água da rede da FIPAG nos perídos das facturas, por problemas técnicos reconhecidos pela própria empresa!.

Isto acontece apesar de existir legislação para proteger o cidadão. O decreto n. 30/2001 de 15 de Outubro, publicado no Boletim da Republica, I Série número 41, que aprova as normas de funcionamento dos serviços da Administração Pública e revoga o decreto n. 36/98 de 27 de Novembro, no seu artigo 15 prevê as garantias dos particulares, e no artigo 16 faz menção as garantias da administração pública respectivamente. Garantias dos particulares são garantias dos direitos das pessoas singulares ou colectivas as seguintes: (a) O requerimento; (b) A reclamação; (c) O recurso hierárquico; (d) O recurso Tutelar; e) O recurso da revisão; e, (f) O recurso contencioso.

Outra lei, a lei 14/2011 de 10 de Agosto, publicado no Boletim da Republica, I Série numero 32, regula a formação da vontade da administração Publica, estabelece as normas de defesa dos direitos e interesses dos particulares, e revoga a reforma Administrativa Ultramarina (RAU) e o Decreto-Lei n 23229, de 15 de Novembro de 1933, no seu artigo 18 traz mais garantias dos administrados, alem das enumeradas no artigo 15 do decreto 30/2001 encontramos: (a) A queixa; (b) A denuncia; e, (c) a petição, queixa ou reclamação ao provedor da justiça.

A imagem de casas a serem destruídas pela Administração Pública na zona do Grande Maputo, ao longo da estrada na Circular e os comentários dos agentes ouvidos pela imprensa no local, são exemplos mais vivos da primazia do interesse da Administração Pública. Nas câmaras, os donos dos imóveis apareciam a acenar com documentos que provavam que o contencioso com o município estava a ser dirimido em tribunal, e num comentário, um agente do Estado afirmava que os actos do município não impediam que o contencioso seguisse em frente no tribunal.

A mesma Lei que prevê as garantias dos particulares (artigo 15 do Decreto n. 30/2001 de 15 de outubro), estabece no seu artigo seguinte (Art. 16) as garantias da Administração Pública, respetivamente:

  1. O privilégio da execução prévia dos actos definitivos e executórios;
  2. A obrigatoriedade da apresentação imediata do funcionário da Administração Pública ao respectivo superior hierárquico para efeitos da entrega do serviço a seu cargo, por motivo da cessação da relação de trabalho, transferência, destacamento, licença de longa duração ou quando tenha de ser sujeito a privação de liberdade;
  3. Direito de regresso em caso de indemnização a terceiros, pelos danos causados por actos dos agentes da administração publica no exercício das suas funções;
  4. O poder de execução forcada dos actos administrativos definitivos e executórios.

A triste realidade do país é que as garantias da administração púbica têm permitido acções que ilibam o governo da responsabilidade de garantir ao cidadão o gozo dos seus direitos na medida em que para os particulares oferece mecanismos morosos e inexequíveis, e para a Administração Pública mecanismos que devem ser executados e caso haja alguma reclamação que se faça após a sua execução.

A Assembleia da República deve agir para impedir o governo de gozar de um direito constitucional em litígios contra o cidadão, enquanto o governo não cumprir com o mandato constitucional de garantir que o cidadão possa se proteger do facto de, como escreve Sal e Caldeira, a Administração Pública (“AP”), no âmbito do seu poder de actuação discricionário e poder de execução prévia das suas decisões, pode cometer excessos (ou mesmo “abusos”) e violar direitos e interesses legítimos dos cidadãos

A Providencia Cautelar é um meio pelo qual o cidadão pode fazer uso quando haja justo receio de que o seu direito possa ser violado, ou quando estamos perante o perigo da demora, é usado com vista a proteger em tempo útil o direito que visam acautelar e vem previsto nos artigos 399 e seguintes do Código de processo Civil.

A Providência Cautelar foi criada para ser mais rápida em relação ao tempo que os outros meios levam a serem tramitados (temos tido um normal anormal, visto que podem passar 6 meses após a interposição de uma Ação e não ter ocorrido nem a citação da outra parte), porém, são onerosas para o cidadão comum, sem retirar a simples ausência de instituições judiciais na mesma extensão que as instituições do poder executivo. O diabo está nos detalhes, visto que, a meu ver o cidadão acaba não recorrendo a esse meio porque:

  1. Deve procurar um advogado para que possa elaborar a petição e colocar todos aspetos técnicos que fundamentem a pretensão;
  2. Deve ter fundos para que possa pagar os honorários e as custas judiciais que advém do processo.

Devemos ter a noção de que, boa parte da população moçambicana vive abaixo de um dólar por dia. Por vezes pode se levantar a questão de se anexar o atestado de pobreza para requerer a isenção de custos, mas para obter esse mesmo atestado é necessário pagar no mínimo 500MT na administração, logo são custos que muitos que tem o seu direito violado não estão a altura de pagar, podendo então ver o seu direito a ser violado sucessivamente.

FIM

 

 

Salva Madalena Numaio Mabasso, activista social e Advogada inscrita na Ordem dos Advogados de Moçambique. É licenciada em Direito pelo Instituto Superior de Tecnologia e Gestão (ISTEG), tem diploma em quadro legal, resolução de conflitos eleitorais e segurança eleitoral pela Bridge, conflitualidade e desenvolvimento institucional pela Justa Paz, e mediação em processos civis pelo Tribunal Supremo. É colaboradora no projecto “Constituição e Justiça Social” do CEPCB, um projecto que advoga por uma ligação mais forte entre direitos plasmados na constituição e a responsabilização de governos no poder. No projecto, o princípio básico é o de que a velocidade de satisfação jurídica da garantia de execução prévia da administração pública deve ser igual à velocidade de garantia do exercício do direito de petição de qualquer cidadão afectado, sem nenhum constrangimento burocrático determinado pela mesma administração pública.

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